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Por que Brasil e Argentina escolheram a Rússia em vez da Ucrânia

- NATIONAL INTEREST - Richard M. Sanders - TRADUÇÃO CÉSAR TONHEIRO - 20 MAR, 2022 -

A forma como o Brasil e a Argentina lidaram com a crise na Ucrânia terá que ser considerada mais uma oportunidade perdida entre muitas que já passaram.


Um dos aspectos mais bizarros da guerra da Rússia contra a Ucrânia tem sido o comportamento do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e de seu colega argentino, Alberto Fernandez. Ambos os líderes visitaram a Rússia, onde se encontraram com Vladimir Putin pouco antes da invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro. As visitas não fizeram parte de nenhum esforço para impedir a invasão, que muitos já viam como provável, já que as forças russas estavam ameaçando a Ucrânia.


Em vez disso, apesar das crescentes tensões e da perspectiva de uma grande guerra na Europa, tanto Bolsonaro quanto Fernandez se envolveram no tipo de visitas rotineiras de estado e planejadas há muito tempo, que são o pão com manteiga da diplomacia normal de alto nível, com o objetivo de fortalecer políticas e laços comerciais e, é claro, permitindo que os líderes joguem no cenário internacional e, esperançosamente, pareçam estadistas em suas capitais de origem.


Viagens


O argentino Fernandez visitou a Rússia nos dias 2 e 3 de fevereiro. Houve extensas críticas à sua decisão, com comentaristas locais e norte-americanos notando que ele estava fazendo esta viagem em meio ao acúmulo da Rússia na fronteira ucraniana, e também quando a Argentina estava concluindo suas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a renegociação de sua dívida de US$ 44 bilhões com a instituição. Sugeriu-se que, dado o grande peso que os Estados Unidos têm no FMI e a importância da questão ucraniana para ele, uma viagem a Moscou foi imprudente, argumento que Fernández deu de ombros.


Ele recebeu toda a pompa e cerimônia devidas pelos russos e teve uma reunião privada com Putin. A característica mais notável da visita foi o que não foi dito. Enquanto os olhos do mundo estavam voltados para a borbulhante crise na Ucrânia, Fernandez aparentemente não fez menção a isso em suas discussões. Ele agradeceu à Rússia pelo fornecimento de vacinas Sputnik V Covid-19 (controversa na Argentina, já que os suprimentos chegaram mais tarde do que o prometido e a vacina em si não recebeu a aprovação da Organização Mundial da Saúde).


Ele ofereceu a Argentina como “porta de entrada” para o engajamento russo com a América Latina, e mesmo enquanto o acordo com o FMI aguardava aprovação final em Washington, Fernández aproveitou para dizer que a Argentina precisava “deixar de ser tão dependente do Fundo e os Estados Unidos e tem que se abrir para outros lugares e é aí que me parece que a Rússia tem um lugar importante.”


A visita de Bolsonaro aconteceu em 15 de fevereiro, quando a crise na Ucrânia se agravou ainda mais. Ele disse que o Brasil não está tomando partido, mas que “minha leitura do presidente Putin é que ele é um homem de paz”. Ele destacou as diversas áreas de cooperação entre Brasil e Rússia, como defesa, petróleo e gás e agricultura, e disse estar “solidário” com Putin.


O governo dos EUA havia aconselhado privadamente contra a viagem (fato confirmado pelo vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão). Após a viagem, a porta-voz da Casa Branca Jen Psaki criticou duramente Bolsonaro como “do outro lado de onde a comunidade global está”. Bolsonaro ignorou todas as críticas, afirmando até que pode ter sido uma coincidência que, após sua viagem, Putin tenha anunciado a retirada de algumas tropas, descrevendo isso como um “grande gesto”. (Claro, nenhuma tropa foi realmente retirada.)


A Rússia invade — e agora?


A invasão real, tão logo após as duas visitas, deixou os dois governos desequilibrados. Nos dias imediatamente anteriores ao ataque, Fernández se recusou a criticar diretamente a Rússia ou Putin, apenas dizendo que esperava que a crise na Ucrânia pudesse ser resolvida por meio de “diálogo pacífico e solução política e não uso da força”. Após o início dos combates, a Argentina manteve um silêncio desconfortável, mas em 2 de março emitiu uma declaração dizendo que “nenhuma aquisição territorial por meio do uso ou ameaça de força pode ser reconhecida como legal”. Em uma sessão do Congresso, Fernández condenou a invasão e curiosamente pediu um minuto de silêncio “pelos mortos da guerra e aqueles que perdemos para o COVID”.


Os argentinos também esperaram por uma declaração pública sobre a Ucrânia de Cristina Kirchner, ex-presidente e atual vice-presidente, que lidera uma poderosa facção dentro da coalizão peronista governista a ponto de quase ser uma presidente sombra. De maneira típica, em vez de oferecer uma condenação direta, ela se concentrou, primeiro em si mesma e depois nas preocupações argentinas.


Em um tweet, Kirchner observou que havia apoiado a integridade territorial da Ucrânia em 2014 (quando a Rússia tomou a Crimeia). Ela então continuou dizendo que “depois de 40 anos das Malvinas [Falklands] e 8 anos do conflito entre a Rússia e a Ucrânia na península da Crimeia [estou] refrescando a memória de algumas pessoas”.


Se a reação da Argentina, pelo menos no início, foi marcada por equívocos e referências às suas próprias preocupações, a do Brasil parecia estar perto de apoiar a Rússia. Quando o vice-presidente Mourão condenou as ações da Rússia, Bolsonaro disse que ele próprio era “a única autoridade que pode se posicionar sobre essa crise. Quem fala é o presidente”. Ele, no entanto, não fez sua posição conhecida. No entanto, em 28 de fevereiro, ele disse que a Ucrânia “confiava em um comediante o destino de uma nação” e defendeu o reconhecimento da Rússia às “repúblicas” de Donbas.


Bolsonaro também questionou a necessidade do Brasil de comprar fertilizante russo para seu enorme setor agrícola, que sem ele poderia sofrer “graves danos”. Ele enfatizou a neutralidade do Brasil e acrescentou que “a questão dos fertilizantes é sagrada”. Com um presidente claramente pouco inclinado a criticar a Rússia, muito menos Putin pessoalmente, o Itamaraty se contentou com uma posição inicial pedindo “negociação que leve a uma solução diplomática da questão”.


O provável rival de Bolsonaro na corrida presidencial deste ano, Luiz Ignacio Lula de Silva (Lula), e a esquerda do Brasil geralmente não foram tão longe quanto a inclinação de Bolsonaro para a Rússia, mas definitivamente concordaram com sua posição de neutralidade. Lula disse: “As grandes potências precisam entender que não queremos ser inimigos de ninguém... Não estamos interessados em uma nova Guerra Fria”. Seu ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa, Celso Amorim, que nunca foi amigo dos Estados Unidos, disse que “denunciar a Rússia seria submissão à agenda de Washington”.


A questão da Ucrânia logo chegou às organizações internacionais, fóruns desconfortáveis tanto para a Argentina quanto para o Brasil, à medida que as votações são tomadas, e as posições ambíguas são difíceis de manter. Quando uma resolução condenando a invasão foi apresentada na Organização dos Estados Americanos (OEA), os dois países se opuseram. Mas, em vez de abordar a substância, argumentaram que, como fórum regional, a OEA não era um local apropriado para discutir a questão.


Não sendo atualmente membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Argentina foi poupada de assumir uma posição lá. O Brasil, um membro, acabou votando a favor de uma resolução exigindo que a Rússia parasse seu ataque e pedindo a retirada imediata de suas forças. (A resolução previsivelmente foi vetada pela Rússia.) No entanto, foi relatado que o Brasil tentou suavizar a linguagem. À medida que o alcance da invasão da Rússia se tornava mais claro, esquivar-se da questão tornava-se cada vez mais difícil, e quando uma resolução semelhante foi votada na Assembleia Geral das Nações Unidas, Brasil e Argentina juntaram-se a 139 outros estados para apoiá-la.


Toda política é local


Como essas duas democracias, importantes em sua região, e no caso do Brasil, com pretensões de um papel global, se encontraram em posições tão constrangedoras e autocontraditórias? Parece ser uma mistura de ideologia, predileções pessoais e política doméstica. Bolsonaro aparentemente sente uma afinidade com Putin. Ambos adotaram personas públicas machistas. Ambos têm tendências autoritárias (embora Bolsonaro opere em um ambiente muito mais restrito, pois o Brasil tem uma imprensa, poder legislativo, judiciário e sociedade civil livres em funcionamento). E ambos aderem a uma mistura obscura de nacionalismo e conservadorismo cultural. Um sinal do elemento ideológico da viagem foi o fato de que a outra parada de Bolsonaro foi a Hungria, onde Viktor Orban governa com sua própria marca de populismo de direita.


Obviamente, Bolsonaro calculou mal a probabilidade de a Rússia realmente se mudar. Ele, sem dúvida, não queria perder a chance de aparecer como ator no cenário mundial, onde é mal visto por muitos colegas. Ele não tem os laços com o presidente Joe Biden que tinha com o presidente Donald Trump.


E na Europa, ele é uma espécie de pária, dada a pouca atenção que dá aos direitos humanos, meio ambiente e questões de igualdade de gênero. Ele deve ter achado irritante que Lula tenha sido recentemente recebido calorosamente por líderes europeus e tratado quase como um chefe de Estado em exercício. O desejo de aparecer como um estadista global certamente é intensificado pelo fato de ele e Lula se enfrentarem em outubro deste ano e Lula estar bem à frente nas pesquisas.


Enquanto a invasão russa o deixou do lado errado da opinião internacional e doméstica, Bolsonaro mostrou que, uma vez que toma uma posição, seja certa ou errada, tende a ficar com ela, muitas vezes com veemência e hostilidade crescentes para com aqueles que o desafiam. Isso foi demonstrado em sua resposta à pandemia de Covid-19, que ele descreveu pela primeira vez como “uma gripezinha”; ele não estava entusiasmado com a vacinação (na verdade, ele não se vacinou), promoveu os supostos benefícios da cloroquina e se opôs aos requisitos do uso de mascaras. No caso da Ucrânia, ele assumiu uma posição a ponto de denegrir grosseiramente o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy e demorou a se afastar dela.


A referência de Bolsonaro à importância do fertilizante russo (e, por extensão, bielorrusso) não é totalmente inventada. Uma grande parte dos fertilizantes do Brasil é de origem internacional, e esses países são grandes players nos mercados globais. E politicamente, o agronegócio brasileiro tem sido uma importante fonte de apoio financeiro e político para Bolsonaro. Sem dúvida, sem o fertilizante russo disponível, os preços globais subirão.


Ainda assim, o Brasil, com seu setor agrícola altamente eficiente e orientado para a exportação, está em uma posição muito melhor para lidar com qualquer escassez do que muitos outros países. Ao tornar essa questão parte de seu discurso, Bolsonaro cortou o desejo de longa data do Brasil de ser levado a sério como uma grande força internacional. Dizer que o Brasil, por sua dependência de fertilizantes, não poderia se posicionar em uma questão global de importância candente parece particularmente constrangedor para um país que há muito se orgulha de sua diplomacia sofisticada.


Se o Bolsonaro do Brasil toma uma posição e permanece com ela bem depois de se provar inviável, o Fernández da Argentina tende a balançar com o vento como um cata-vento, com considerações políticas domésticas sempre de muito mais importância do que objetivos de política externa de longo prazo. O contexto doméstico para Fernández é sua dolorosa necessidade de negociar e implementar um plano de pagamento da dívida da Argentina com o FMI, entidade que é vista com hostilidade por grande parte da sociedade argentina e especialmente entre seus próprios peronistas. Dado que o FMI é visto quase de forma intercambiável com os Estados Unidos, visitar Putin foi uma maneira de Fernández reforçar sua posição com a esquerda e demonstrar sua independência de Washington.


Além disso, antes de sua viagem, ficou entendido que Fernandez poderia usar a viagem para buscar financiamento alternativo adicional, como um empréstimo da Rússia de seus direitos especiais de saque no FMI para reforçar as reservas da Argentina. Isso não parece ter ido a lugar nenhum e nenhum anúncio relacionado a isso foi feito. A China foi a próxima parada de Fernandez e, embora os chineses não tenham feito nenhum esforço para assumir o ônus de emprestar à Argentina, alguns anúncios um pouco mais plausíveis de possíveis investimentos foram feitos, principalmente o financiamento chinês para a construção de um terceiro reator no complexo de energia nuclear Atucha perto de Buenos Aires.


Quando a Rússia invadiu, a hesitação tornou-se a ordem do dia, com longos silêncios por parte de Fernandez seguidos por declarações fracas do Ministério das Relações Exteriores. O fato de os argentinos considerarem as declarações da vice-presidente Kirchner tanto ou mais do que as de Fernández só serviu para apontar sua posição politicamente fraca.


Foi somente em 1º de março que o próprio Fernandez condenou publicamente a invasão, embora sem mencionar Putin pelo nome. Quando a Argentina finalmente votou com a esmagadora maioria das nações para condenar a Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas, o ministro das Relações Exteriores Santiago Cafiero se esforçou para dizer que essa votação “não constitui um alinhamento com a OTAN ou um abandono da neutralidade. O único alinhamento que a Argentina tem é com os interesses dos argentinos.”


O comportamento da Argentina e do Brasil diante das ações da Rússia foi marcado pela incoerência com a vantagem política interna de curto prazo sempre em primeiro plano. Isso não quer dizer que o cálculo de cada nação inevitavelmente a levará a um alinhamento rápido e próximo com a Ucrânia, os Estados Unidos e a OTAN. É fácil entender por que alguns países se recusaram a romper com Moscou. A China, é claro, está jogando um longo jogo em busca de uma posição global cada vez mais poderosa. Ficar perto da Rússia faz parte de sua estratégia.


A Índia tem um relacionamento de longa data com a Rússia, um importante fornecedor de armas; embora tenha começado a se diversificar, inclusive fortalecendo os laços com os Estados Unidos, não está disposta a cortar os vínculos existentes. Israel, que de outra forma poderia apoiar vocalmente a Ucrânia em face da agressão, também tem sido cauteloso, pois precisa manter uma relação de trabalho com a Rússia que lhe permita desconflitar com as forças russas quando atacar alvos iranianos/Hezbollah na Síria. Na América Latina, Cuba, Nicarágua e Venezuela contam com o apoio russo há anos.


Apesar das alegações de Bolsonaro sobre fertilizantes, é difícil ver as posturas brasileira ou argentina como mais do que postura política misturada com improvisação amadora após o fato. Nas capitais globais, o veredicto que seus líderes enfrentarão será aquele que eles e seus antecessores já sofreram em muitas ocasiões: essas pessoas simplesmente não são sérias. Para o Brasil, que olha para um futuro ao se juntar às grandes potências do mundo, e para a Argentina, que lembra um passado em que parecia prestes a se juntar às fileiras dos ricos e importantes, a maneira como lidaram com a crise na Ucrânia terá que ser marcada como mais uma oportunidade perdida entre muitas que já passaram.


Richard M. Sanders é membro global do Woodrow Wilson International Center for Scholars. Ex-membro do Serviço de Relações Exteriores Sênior do Departamento de Estado dos EUA, atuou como Oficial do Escritório da Argentina de 1997 a 1999 e como Diretor do Escritório de Assuntos Brasileiros e do Cone Sul de 2013 a 2016.


Imagem: Reuters.



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