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Leis, salsichas e o balcão de negócios da SERPRO

25/01/2020



Esta é uma daquelas histórias que dão razão à frase atribuída a John Saxe: “Leis, como salsichas, deixarão de inspirar respeito na proporção em que sabemos como elas são feitas".


No primeiro dia de 2020 os servidores da SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados) cortaram o canal eletrônico de comunicação das montadoras com o DENATRAN (Departamento Nacional de Trânsito) que era usado desde 2012 para o envio de dados de campanhas de Recall para a base de dados do RENAVAM (Registro Nacional de Veículos Automotores). O envio destes dados, obrigatório para as montadoras, era regulamentado pela Portaria Conjunta 69 de 15 de dezembro de 2010 [1], e não existia nenhuma taxa para as montadoras ou burocracia: a cada nova campanha de Recall, as montadoras registravam um novo número de campanha e enviavam os números de chassis de todos os veículos envolvidos. À medida que os veículos eram atendidos em concessionárias, as montadoras enviavam por este canal eletrônico as baixas das campanhas. Mas o corte no canal de comunicação ocorreu pegando as montadoras de surpresa, pois muitas não esperavam que o serviço passasse a ser cobrado.


Os consumidores que possuem veículos com campanhas pendentes serão atingidos, pois as pendências de Recall passam a constar da CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo) em todo o Brasil, sancionado pela Portaria Conjunta N° 3, de 1° de Julho de 2019[2], que revogou a portaria anterior, mas manteve a exigência de envio de dados e estabeleceu base quinzenal para este envio.


O novo “modelo de negócio”, assim chamado pelos funcionários da SERPRO, na contramão da desburocratização proposta pelo governo Bolsonaro, exige que as montadoras façam o cadastro em uma nova plataforma chamada CREDENCIA [3], que exige acesso somente com e-CNPJ e identificação e procuração dos representantes legais. Após a realização do cadastro, as montadoras terão acesso a área de “e-Commerce” (Comércio Eletrônico) e poderão comprar o direito de enviar dados ao DENATRAN pelo custo de R$ 5,98 por chassis incluídos na campanha de Recall. O custo incide não somente sobre novas campanhas de Recall, mas é retroativo e atinge todas as campanhas que estavam em aberto, ou seja, sem atingir 100% de reparos no universo afetado. As dezenas, talvez centenas de milhares de reais que as montadoras terão que desembolsar é uma surpresa para os membros da ANFAVEA (Associação Brasileira de Fabricantes de Veículos Automotores) que foi sancionada como um cavalo de Tróia inserido em uma “inocente” portaria assinada pelo diretor do DENATRAN, Jerry Adriani Dias Rodrigues, a Portaria 4.312 de 4 de Outubro de 2019, que estabelece os preços para os serviços do DENATRAN. Em uma linha desta portaria consta “Registro de Recall (Novos e Legados)”, sem dar qualquer entendimento sobre o que são “Legados”.


O apagão de envio de dados ao DENATRAN devido à necessidade de adequação das montadoras, aliado à impressão de pendências na CRLV em todo o território nacional, irá causar transtornos para o licenciamento e transferência de veículos e até mesmo depreciação na venda. Sabe-se que em alguns estados, pela política mais progressista dos respectivos DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito), já é prática o impedimento de licenciamento e transferência quando há pendência de Recall. Os clientes terão que aguardar a normalização do envio para “limparem” a pendência no DENATRAN. A consulta para qualquer veículo pode ser feita no site do DENATRAN [5].


Esta confusão entre ANFAVEA e SERPRO tem início em uma quarta-feira, 14 de Novembro de 2018, no estande da ANFAVEA do Salão do Automóvel 2018. As montadoras, com o desejo de melhorar o índice de atendimento de recall procuravam junto ao governo o acesso aos dados dos consumidores, como é feito pela NHTSA (National Highway Traffic Safety Administration) nos Estados Unidos, pois se estima que apenas 60% dos consumidores no Brasil atendem ao chamamento de Recall. Um dos motivos atribuídos é que o cadastro de clientes das montadoras é apenas do primeiro proprietário, aquele que comprou o veículo zero quilômetro. O DENATRAN possui os dados atualizados no mínimo anualmente pelo licenciamento.


Maria da Glória Guimarães Santos era a diretora-presidente da SERPRO, que possuía uma gestão focada em obter lucros [6], foi representada nesta reunião para oferecer às montadoras o sistema chamado “Aviso de Recall” pelo preço sugerido de R$ 17,68 por veículo incluído na base do RENAVAM. Isto dava o direito de notificar os consumidores pelos aplicativos (iOS e Android) e-CNH e e-CRLV, e-mail, envio de notificação por carta, SMS e acesso ao cadastro do proprietário no RENAVAM. Oferecia também uma “degustação”, tudo aos moldes e na linguagem de B2B (“business to business”) e “modelo de negócio”.


Paulo Guedes nomeou Caio Mario Paes de Andrade para substituir Maria da Glória em janeiro de 2019. O novo diretor-presidente, entretanto, possui uma visão liberal muito semelhante de sua antecessora [7] e deu continuidade na SERPRO à linha de estatal competindo por lucro no livre mercado. No entanto, Recall é antes de tudo um problema de segurança que coloca em risco milhares de pessoas no trânsito. A prioridade do governo diante de um assunto tão sério quanto Recall deveria ser preservar vidas, contudo a SERPRO e DENATRAN olharam somente para a vultosa arrecadação, que foi tramada debaixo das barbas de Sérgio Moro e Tarcísio Freitas [2] por uma obra de tecnocracia delegada à confiança de subordinados e que jamais procuraram o entendimento com a ANFAVEA.  Ainda mais nociva foi a portaria de Jerry Adriani [4] que permitiu a SERPRO meter a mão no bolso das montadoras com o sacrifício daqueles que dependem de licenciar seus veículos. Resta sabermos se a ANFAVEA se pronunciará e se este novo avanço do Estado sobre impostos, liberdade e burocracia serão notados e revertidos pelo presidente que prometeu uma agenda conservadora, exatamente na contramão destes acontecimentos.


A velocidade e surpresa em que os eventos se sucederam também sugerem o caráter de tramóia: a publicação da portaria de Moro em 1° de Julho de 2019 [2] sem entendimento com a ANFAVEA, a publicação da portaria de Jerry Adriani em 4 de Outubro de 2019 [4] sem esclarecer o que eram “Novos e Legado” e taxando algo que as montadoras sequer esperavam e finalmente o corte de comunicações durante as festas de fim de ano, enquanto todos estão tirando alguns dias de folga e não podem protestar.



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