Jacy de Souza Mendonça
01/06/2020
Em quinze anos no exercício das funções de Promotor de Justiça, tive graves dificuldades com duas espécies de inquéritos policiais: os relativos à prática do jogo do bicho e os relativos à exploração de casa de prostituição. Minha obrigação funcional era perseguir criminalmente essas condutas, mas isso conflitava com minha consciência e eu precisava me comportar sem desrespeitar essas duas espécies de compromissos. O caminho que encontrei para o equilíbrio foi procurar de forma acurada falhas no processamento dos inquéritos para obrigar seu retorno à Delegacia em diligências complementares. O mínimo que ganhava era tempo e, provavelmente, a prescrição.
Se o governo brasileiro era (e é) o maior explorador do jogo, se ele tem a maior roleta do mundo que chama Caixa Econômica, se ele ganha fortunas por esse caminho, como punir, ainda que sob a forma de contravenção, o pobre cidadão que arrisca um real sonhando com sua independência econômica? Minhas manobras fizeram com que nunca tivesse um condenado por esse tipo de infração penal.
Não menos complicada a punição pela exploração do lenocínio. Todas as cidades brasileiras têm suas ruas enfeitadas por motéis, belas casas com luxuosos letreiros luminosos oferecendo-se como local seguro e aconchegante para encontros com fins libidinosos. Certa vez, em viagem ao exterior, perguntou-me um jovem muçulmano se era mesmo verdade o que ele tinha lido: que, no Brasil, existiam locais dessa natureza. Respondi-lhe que sim, que tinham até alvará de licença policial para funcionamento, que pagavam impostos e eram fiscalizadas... ele, boquiaberto, só reagiu dizendo: que maravilha! Em seguida acrescentou ter lido no Código Penal Brasileiro que essa prática caracterizava-se como crime de lenocínio, punível com pena de 2 a 5 anos (art. 229). Tive que explicar-lhe a tolerância brasileira a leis que não pegam: por lei seria punível, mas, na prática, todos ignoram.
Assim, quando recebia um inquérito por exploração de casa de prostituição, estava certo de que a infração consistia, na verdade, na falta de pagamento da taxa devida ao policial de plantão naquele momento, naquele local.
Chegou o dia, porém, em que o inquérito por exploração de casa de prostituição estava perfeito. Nenhuma falha técnica. A prova era absolutamente convincente. A dona da casa fora inutilmente acompanhada por advogado absolutamente capacitado. Fiquei perplexo. Não consegui determinar o retorno dos autos em diligência à Delegacia de Polícia. Retardei minha iniciativa o quanto pude, mas tive que oferecer a denúncia.
Em seguida fiquei sabendo que a dona do estabelecimento era mãe de um político influente. Ignorei. Houve pressão intensa de cidadãos clientes da casa ou membros do mesmo Partido Político. Ignorei. Minha tarefa acusatória, apesar de minha resistência interior, já estava cumprida.
Três dias depois o Diário Oficial da União publicava ato assinado pelo Presidente da República concedendo anistia à acusada...