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AS DUAS CRIANÇAS

Jacy de Souza Mendonça

20/05/2020



Começava a examinar o inquérito policial sobre estupro presumido recém recebido, quando uma humilde senhora, acompanhada por duas crianças, entrou em meu gabinete no fórum. Uma das crianças mantinha a outra no colo e as duas choravam copiosamente. Não se tratava de mãe com duas filhas, mas de avó com a filha (de uns 13 anos) e a neta. Uma das crianças era mãe da outra. Queixavam-se de que o pai negava a paternidade e fugia até ao dever de alimentação do bebê. Acreditavam elas que o Promotor de Justiça pudesse corrigir esses desmandos. Com a paciência e o sofrimento que o caso exigia expliquei-lhes que o máximo que poderia fazer, como Curador de Menores e Promotor de Justiça, era oferecer denúncia crime e propor ação de alimentos contra o estuprador, mas nada disso preenchia a necessidade daquelas pobres criaturas.


No dia do interrogatório do acusado, lá estavam as três novamente, com o pranto ainda mais intenso, partindo o coração de todos os assistentes. O réu, bem orientado por seu advogado, negava ter mantido relações sexuais com a menina, caso contrário, caracterizaria o estupro presumido, em razão da idade dela, e a condenação seria certa. Ao escutar essa negativa, a menina-mãe explodiu em desespero e tornou-se impossível prosseguir com a audiência.


De minha parte, furioso em razão da desfaçatez do acusado, decidi pedir à Polícia Técnica o exame de paternidade, cujo resultado positivo seria fatal para ele. Não foi fácil movimentar policiais assoberbados com outros exames que julgavam mais graves, mas consegui.


Naquela época, não se conhecia a prova do DNA. Simplificando, o que se fazia era organizar três séries paralelas de dez tubos de ensaio cada uma. Na primeira, no sangue extraído da criança eram misturados determinados componentes químicos; a mesma combinação era realizada nos dez tubos seguintes, com o sangue do suspeito e, nos dez últimos, com o sangue da mãe. Passados alguns dias, uma reação química apresentava o resultado, que deveria ser igual para o sangue da criança e o dos pais. A divergência entre de resultados demonstraria a participação de outra pessoa no evento e, portanto, a negativa da paternidade.


Para surpresa geral, o laudo recebido da Polícia Técnica dias depois revelava que o elemento genético da criança não correspondia ao do suposto pai. Convocadas a mãe e a avó, foram informadas deste resultado pelo Juiz. A explosão emocional foi desesperadora, indescritível mesmo, mas nada mais era possível fazer. O réu estava absolvido.


Passados alguns anos, em uma reunião social, um grupo de advogados contava vantagens; nenhum deles me identificou como Promotor, embora um tivesse sido o orientador do acusado. Gabava-se este pelo fato de estar desesperado na defesa de seu cliente, em um processo de estupro presumido, no qual o Promotor requerera perícia técnica que levaria certamente à prisão dele, quando teve uma ideia genial: localizou a pessoa que fazia a limpeza do laboratório e, mediante módica gorjeta e alguma orientação, conseguiu que ela pingasse uma gota de seu próprio sangue em cada cubeta de sangue da criança... pronto! Estava negada a paternidade e absolvido o acusado.


Naquele dia aprendi algo que não tinham me ensinado na escola: a prova testemunhal é mesmo a prostituta das provas, mas a prova técnica pode ser a assassina da Justiça.

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