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A aflição de todos nós - Bela homenagem de Martim a Nivaldo!

- Martim Vasques da Cunha - 17 AGO, 2021 - VIA EMAIL -

Existir é resistir. - W. Dilthey

Para Nivaldo Cordeiro, escolher se bebia suco de laranja ou de melão era a mesma coisa que escolher entre Deus e o Diabo.



1.


Ler um texto de Nivaldo Cordeiro, falecido ontem de maneira inesperada, é como viver no Brasil nos tempos da Gloriosa: ame-o ou deixe-o. O homem não é brincadeira. Para ele, o Apocalipse não está prestes a acontecer. Já aconteceu – há muito tempo e só você não percebeu. Na verdade, segundo ele, o Apocalipse acontece todo o dia, bem ao seu lado, de preferência na casa lá na esquina, com o seu vizinho e, em breve, atingirá a sua esposa e seus filhos. Isto é, se você não tomar cuidado. Muito cuidado.


Parece que é um exagero, mas não é. Nivaldo tem cordeiro no nome; contudo, possui o temperamento de um tigre, prestes a atacar quem é contra os seus princípios, defender o que é o seu e, em especial, os seus. Se for para algum altar sacrificial, será à força e o sujeito que tentar isso dele vai ter de suar um bocado. Um bom bocado.


Defender princípios é algo que vai contra a corrente do nosso tempo – dominado, sim, pela tal ditadura do relativismo que Bento XVI já diagnosticou e que agora está na moda negá-la efusivamente, até mesmo por conservadores que posam de lógicos matemáticos, mas sequer alcançam a média necessária para ser aprovado em uma mera redação universitária. Nivaldo faz isso o tempo todo, até na hora do almoço do serviço e, se bobear, também na hora do banheiro. Para ele, é igual ao que acontecia com Graham Greene, de acordo com Kenneth Tynan: escolher se beberá suco de laranja ou de melão é a mesma coisa que escolher entre Deus e o Diabo. Nivaldo quer escolher o primeiro, é claro, mas às vezes dá uma piscadela para o segundo, como se este guardasse certos prazeres que qualquer um não negaria. Afinal de contas, ele é humano, como todos nós.


E talvez essa seja a novidade que os textos de Nivaldo Cordeiro mostram. Diferente dos jornalistas e intelectuais que rondam as redações e as universidades, ele, por ser um de nós, por viver as agruras de todos os dias, não é um intelectual – e, ao mesmo tempo, não cai em tentações anti-intelectualistas. Fala o que pensa porque sabe o que viveu. Não tem papas na língua porque sente o vento negro da malícia soprando em direção aos próximos que estima. Escreve sem se preocupar com as aparências – e até mesmo com o próprio sustento econômico, o que é irônico, se soubermos que ele é, antes de tudo, um economista de primeira categoria – pois o que está em jogo é a integridade da sua alma.


É óbvio que eu não concordo com muita coisa do que ele escreve ou diz. Quem for à Livraria Cultura, nosso tradicional ponto de encontro, verá que sempre há dois sujeitos discutindo asperamente a respeito de assuntos sobre os quais eles deveriam pensar a mesmíssima coisa. Mas isso ainda faz parte do pouco de democracia que existe por aí. E nesse ponto aceito plenamente as observações de Nivaldo: não estamos mais em uma democracia – estamos em um país de totalitarismo cultural, apelidado de “esquerda” por seus vencedores no campo midiático, mas que é igual a qualquer um que se aloje no poder, independente do lado da tribuna, e que usa apenas do engodo e da mentira para permanecer onde está.



2.


A tal “guerra cultural” promulgada pela elite americana, depois copiada mal e porcamente por uma seita que se pretendia “conservadora” ou “liberal” não ocorre somente dentro do âmbito de uma disputa entre “direita” e “esquerda”. Ela passa a existir entre os que defendem o indivíduo em sua singularidade e mistério e os que preferem que o homem fique à mercê de grandes corporações, estados políticos gigantescos e aparatos burocráticos monumentais que controlam cada centímetro da sua vida - e desejam que você seja apenas uma engrenagem minúscula em uma enorme máquina de visão alucinada. Nesta arena, o surgimento da internet foi uma benção para quem andava sufocado pelas informações despejadas pela “grande mídia”, um dos braços mais eficazes para o estabelecimento do comportamento coletivista no nosso cotidiano. Como bem explicou Nelson Ascher no artigo “O archote na rede”:

Surgido no começo do milênio, o “web log”, originalmente um diário individual exposto à visitação pública na internet, transformara-se, nos EUA e demais países de língua inglesa (anglosfera), em um meio inédito de jornalismo opinativo, capaz de colocar no ar idéias que raramente chegavam à grande imprensa ou à mídia eletrônica. O catalisador desse salto qualitativo haviam sido os atentados de 11 de setembro de 2001. De repente, milhares de pessoas interconectadas ou interconectáveis pela internet queriam saber mais, opinar, trocar idéias, passar e receber mais e mais informações, teorias, hipóteses, das brilhantes às desvairadas. O espaço opinativo do que hoje chamam com ironia de MSM (“main stream media”, ou “mídia convencional”) já estava ocupado por gente não muito apta a, em tempos subitamente novos, pensar diferente, fora dos padrões (ou “of the box”). Quanto às seções interativas ou de cartas, elas eram mínimas, filtradíssimas e desprezadas. Há sete anos, os blogues mais famosos e influentes da anglosfera já tinham aparecido e estavam se consolidando, atraindo dezenas, às vezes centenas de milhares de leitores e competindo diretamente com a MSM, desafiando-a e denunciando seus erros e seus vieses. Os blogues e blogueiros (bloggers) se dividiram quase de imediato em duas categorias, se bem que com inúmeras colorações intermediárias: “thinkers” e “linkers”. Os primeiros tinham idéias e escreviam artigos, ensaios ou, mais propriamente, “entradas” de seu diário eletrônico. Os outros, num universo superlotado de informação freqüentemente redundante, selecionavam diariamente (“linkando-os”) aqueles artigos e notícias que, segundo seu ponto de vista, mereciam atenção e leitura, compondo, assim, uma espécie de “clipping”, uma antologia que interessava e orientava seu público. A forma intermediária mais bem sucedida consistia em “linkar” a artigos ou notícias e comentá-los. Alguns blogueiros desenvolveram a prática de, às vezes, demolir minuciosamente um artigo da grande imprensa, interpondo comentários analíticos e críticos entre seus parágrafos. Como a primeira vítima repetida desse procedimento havia sido o jornalista inglês Robert Fisk, que escreve para o “The Independent”, a prática foi apelidada de “fisking” (um jogo de palavras com o nome Fisk e com os verbos “to frisk”, revistar alguém, fazer travessuras, e “to fish”, pescar).

Os textos de Nivaldo Cordeiro, muito influenciados pelo aparecimento da obra de Olavo de Carvalho no final da década de 1990 e início dos anos 2000, fazem parte da primeira linhagem, a dos thinkers. Ele ainda insiste em usar um web log meio ultrapassado e, quando anuncia seu novo texto, sempre chega na caixa postal nos horários mais estapafúrdios (Já recebi um artigo de sua autoria em plena véspera do Natal. O tema era sobre o Fausto de Goethe, uma das suas obsessões, junto com o Quixote de Cervantes, o Zaratustra de Nietzsche e o Riobaldo de Guimarães Rosa). Ultimamente, resolveu mostrar sua bella face em vídeos no YouTube. Se não conquistou novos amores, parece que conseguiu amealhar alguns caraminguás de dólares. Para um economista, é um triunfo que confirma sua popularidade – além do fato de que ele lança, na sua conta no Twitter e no Facebook, algumas frases truncadas e chocantes sobre a situação atual, simplesmente para, como o próprio diz, “não perder o mote”.


Se você gosta ou não do “mote” de Nivaldo, o que importa é outra coisa. Por não ser um intelectual, por ser um homem como qualquer um, ele mostra em seus artigos o que todo mundo pensa quando paga uma conta, quando tenta colocar seu filho em uma boa escola, quando vê que há algo de errado no mundo e, em especial, neste país apelidado pelo melhor nome que poderia haver: Bananão. Nivaldo expressa a aflição de todos nós. Porque não há outro nome para o que experimentamos no nosso dia-a-dia; seja sob o nome de Estado, seja sob o disfarce de um partido político com pretensões políticas utópicas, seja sob forças que jamais conseguimos discernir, estaremos sempre aflitos ao desconhecermos se chegaremos com alguma decência ao final da nossa trajetória aqui na Terra.


Todavia, se o leitor ficar com a impressão de que Nivaldo Cordeiro pensa como Aristóteles em relação ao conceito de sorte – ela só ocorre quando a flecha atinge a pessoa ao seu lado – não se engane. Como um cristão angustiado, digno das linhas de um Miguel De Unamuno, a sua conclusão é sempre que há algo além dessa confusão, dessa tampa de marmita que nos abriga. Depende apenas de você ter a boa vontade de aceitar as premissas, lidar com os princípios e aceitar o diagnóstico às raias do trágico. Tal como o brasileiro que vivia na época da Gloriosa (que, no fim, se revelou um fracasso retumbante), amar ou deixar de ler os textos de Nivaldo Cordeiro pode ser um ganho ou uma perda para quem for enfrentá-los com a honra (ou a desonra) apropriada. Faça a sua escolha e, dependendo dela, quem viver verá.


RECEBIDO VIA EMAIL

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